Assombração Tributária - URV e Imposto de Renda PDF Imprimir E-mail

Um fantasma assombra os integrantes do Ministério Público do Estado da Bahia: a cobrança pelo Fisco Federal de valores supostamente devidos de imposto de renda em razão de vantagem indenizatória temporária instituída pela Lei Complementar Estadual n. 20, de 08 de setembro de 2003, percebida por esses agentes no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2006. A indenização referida foi paga durante trinta e seis meses, sem incorporação aos vencimentos, tendo sido reconhecida com o objetivo expresso de ressarcir membros do Ministério Público de perdas decorrentes da conversão da remuneração de cruzeiro real para Unidade Real de Valor - URV, objeto de cobrança em ação judicial julgada favoravelmente aos membros da Instituição na época. A magistratura estadual compartilha atualmente idêntica assombração, pois também recebeu vantagem semelhante com fundamento na Lei Estadual nº 8.730/2003.

O curioso é que a Lei Complementar n. 20/2003 atribuía expressamente natureza indenizatória as parcelas da vantagem deferida, afastando o cabimento de imposto de renda. Por essa razão, o Ministério Público Estadual não promovia a retenção desse tributo no pagamento da vantagem e, no informe anual de rendimentos, expressamente enquadrava os valores pagos como vantagem indenizatória. Os membros do Ministério Público, em estado de absoluta boa-fé, apresentavam suas declarações de rendimentos em sintonia com os informes anuais recebidos do órgão público estadual.

Transcorridos os três anos de pagamento da indenização, a mesma foi extinta e não se falou mais no assunto. Porém, em 2009, surpreendentemente diversos membros do Ministério Público foram autuados pelo Fisco Federal pelo não pagamento do imposto de renda sobre os valores recebidos em razão da Lei Complementar n. 20/2003. Os valores referidos na autuação, abrangentes dos três anos da indenização percebida, mostram cifras de tirar o sono, pois o fisco federal acrescentou ao valor do principal, juros, correção monetária e multa de 75%.

O Fisco Federal não ofereceu ao órgão competente pedido de promoção de ação declaratória de inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 20/2003. Tampouco responsabilizou qualquer órgão estadual pela não retenção do tributo supostamente devido. Resolveu desconsiderar que os beneficiários da indenização não poderiam oferecer declaração de imposto de renda contraditória com os informes oficiais de rendimentos, recebidos do Estado. Deliberou simplesmente assombrar esses agentes, imputando a todos, indistintamente, o ilícito da sonegação tributária, como se pudessem ter adotado conduta diversa da prescrita na Lei Complementar do Estado da Bahia.

O debate sobre se a lei estadual procedeu com acerto ou erro ao qualificar a vantagem referida como indenizatória é questão substantiva, de fundo, que deve entusiasmar tributaristas, conquanto se saiba que o Supremo Tribunal Federal, para pagar vantagem com idêntica finalidade aos Magistrados Federais e servidores do Poder Judiciário da União, editou a Resolução n. 245, de 10 de julho de 2002, declarando que tais pagamentos eram de natureza indenizatória e não estavam sujeitos a imposto de renda. Não entro neste debate.

Prefiro chamar a atenção para um aspecto constitucional, de caráter preliminar e natureza federativa, que tem passado despercebido nesta triste contenda: a própria competência do Fisco Federal para autuar e cobrar tributo sobre a renda que deveria ter sido retido no âmbito do Estado-Membro. A questão é relativamente simples e surpreende que até o momento não tenha sido ventilada.

É que o imposto de renda, nos termos do art. 157, I, da Constituição Federal, embora tributo de competência normativa federal, quando relativo a pagamentos promovidos pelo Estado, simplesmente é tributo que pertence ao Estado-Membro, sendo a União parte ilegítima para promover-lhe a cobrança ou integrar, como sujeito passivo, demandas relativas à forma de retenção do tributo pelo Estado-Membro.

No Superior Tribunal de Justiça a matéria foi pacificada, contando-se mais de uma dezena de decisões que recusam à União legitimidade passiva em demandas promovidas por servidores públicos estaduais com o objetivo de discutir isenção ou não incidência de imposto de renda, retido na fonte por Estado-Membro (STJ, RMS n.º 10.044/RJ, 1ª Turma, Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 17.04.2000; Resp n.º 296.899/MG, 1ª Turma, Min. Garcia Vieira, DJ de 11.06.2001; EDcl no RMS n.º 5.779/RJ, 2ª Turma, Min. Laurita Vaz, DJ de 04.11.2002; AgRg no Ag n.º 356.587/MG, 2ª Turma, Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 30.06.2003; REsp n.º 477.520/MG, 2ª Turma, Min. Franciulli Netto, DJ de 21.03.2005; AgRg no REsp n.º 710.439/MG, 1ª Turma, Min. Luiz Fux, DJ de 20.02.2006; REsp n.º 594.689/MG, 2ª Turma, Min. Castro Meira, DJ de 05.09.2005. 3. Recurso especial a que se dá parcial provimento. (REsp 874.759/SE, Rel Min. Teori Albino Zavascki,Primeira Turma, DJ. 23.11.2006)

A matéria foi claramente sintetizada no Superior Tribunal de Justiça na decisão do Conflito de Competência nº 10.108-SP, litterim:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA - MANDADO DE SEGURANÇA - IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE POR ESTADO FEDERADO - COMPETENCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL (CF, ART. 157, I).

I -  A teor do art. 157, I, da Constituição Federal, o imposto de renda retido na fonte é tributo estadual. Assim, o agente estadual, quando efetua a retenção, age no exercício de competência própria - não, delegada.

II  -  Compete à Justiça Estadual conhecer de mandado de segurança impetrado contra retenção de imposto de renda, no pagamento de vencimentos de servidor público estadual.

Sobre o mesmo tema, MARCO AURÉLIO GRECO, doutor em direito tributário, professor da FGV/SP, em trabalho escrito em 2003, extraiu conseqüências relevantes, de indispensável transcrição:

“a) Os artigos 157, I e 158, I da CF/88 atribuem titularidade direta e própria aos Estados e aos Municípios sobre o montante do imposto sobre a renda que incidir relativamente a rendimentos que pagarem a qualquer título. Não se trata de valor recebido por antecipação, nem de valor cobrado por conta e em nome da União. Trata-se de receita própria por expressa determinação constitucional. O valor que corresponder à adequada aplicação da legislação federal do imposto relativa ao rendimento pago pertence a Estados e Municípios. Esta titularidade tem por objeto o valor que resultar da incidência da norma e não o valor que, de fato, tiver sido retido. Por pertencer a Estados e Municípios, este valor não pertence à União.

b) Na hipótese de não ter havido, à época oportuna, a retenção do imposto na fonte, o Estado ou o Município terá deixado de exercer uma potestade (= poder jurídico) de que estava investido, procedendo, por isso, à entrega ao beneficiário de um montante superior ao que deveria ter entregue.

c) Neste caso, Estado e Município podem promover a cobrança do imposto que não foi retido à época própria, fazendo-o diretamente em relação aos contribuintes, pois este valor lhes pertence. Sua titularidade é direta e imediata e independe de ação de terceiros (como a União).

d) A União não tem legitimidade para receber e cobrar o valor do imposto incidente na fonte que não foi objeto de retenção por Estado ou Município. A Constituição estabelece que a legitimidade da União é apenas sobre o que exceder ao valor incidente na fonte, pois, quanto a esta última parte, a legitimidade pertence ao Estado ou ao Município. Tendo havido pagamento feito diretamente pelos contribuintes à União, englobando montante que deveria ter sido retido na fonte, o respectivo valor deve ser por ela restituído. O valor correspondente ao imposto sobre a renda incidente na fonte pertence ao Estado (artigo 157, I) ou ao Município (art. 158, I), não pertence à União. Só pertence à União o valor devido pelos contribuintes que exceder ao valor do imposto incidente na fonte. O pagamento feito pelos contribuintes diretamente à União até o montante correspondente ao imposto incidente na fonte configura pagamento a quem não tem legitimidade para recebê-lo. Tem a natureza de pagamento indevido, cuja restituição os contribuintes têm o direito de pleitear e obter.” (Titularidade de Estados e Municípios sobre o IR na Fonte: os artigos 157, I, e 158, I, da CF/88, in: Revista Fórum de Direito Tributário - RFDT, Belo Horizonte, ano 1, n. 3, maio 2003, p. 117).

A atuação do Fisco Federal é, por todo o exposto, inexplicável e ilegítima na caso baiano. Cruel, inclusive, pois iniciou as intimações e cobranças pelos aposentados da Instituição, fragilizados pela idade e, às vezes, pela doença. Vários deles, assombrados pelas multas, indignados pela acusação de serem sonegadores, resolveram a assombração tributária sujeitando-se ao assédio da Receita Federal, pagando a União valores que, se fossem devidos, seriam devidos exclusivamente ao Estado da Bahia. Trata-se de um abuso que reclama urgente correção, por mandado de segurança ou outra medida de tutela. Espera-se que o Estado da Bahia igualmente atue, por seus órgãos, reivindicando a própria competência para tratar do assunto, sem omitir-se nesta questão sensível, que agride a Federação.

Paulo Modesto
Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público, Promotor de Justiça do Estado da Bahia e Presidente da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Editor do site www.direitodoestado.com.br


Jornal A Tarde, Edição de 18/11/2009
 

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